sexta-feira, 19 de agosto de 2011

A vida verdadeira de Domingos Xavier - Luandino Vieira

“Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos...”

(Tecendo a Manhã, in A Educação pela Pedra
João Cabral de Melo Neto
)


O livro A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, de José Luandino Vieira, foi escrito em 1961, mas publicado apenas em 1971, em edição francesa, como lembra Fernando Augusto Albuquerque Mourão, no prefácio à edição brasileira, da coleção Autores Africanos, da Editora Ática.




Trata-se de um romance em dez capítulos no qual Luandino Vieira delineia, cinematograficamente, eventos ligados à prisão e tortura da personagem título, Domingos António Xavier. A veia cinematográfica da trama se constrói na utilização dos cortes efetuados, geralmente de um capítulo para o outro, nos quais Luandino apresenta ao leitor as diversas personagens e seus papéis no enredo. Ou seja, assim como os galos de João Cabral de Melo Neto, cada personagem contribui, com suas ações, para a formação das identidades em jogo, quais sejam a identidade da personagem Domingos, fragmentada ao longo da narrativa, bem como a de seus companheiros de luta, da rede de “irmãos” revolucionários. Assim, com a evolução dos fatos, é possível para o leitor entender o funcionamento da estrutura revolucionária, passando pela conscientização do povo, como na passagem em que o alfaiate Mussunda explica ao carteiro Xico João a questão da dinâmica opressora entre ricos e pobres (p. 37) e avançando na intrincada distribuição de tarefas entre os revolucionários, envolvendo desde anciãos até crianças, como é o caso de Vavô Petelo (antigo marinheiro Pedro Antunes) e seu neto, o miúdo Zito, este de importância capital na trama, porque é a primeira personagem que informa da chegada de um novo prisioneiro na Cadeia local, na verdade destinada à recepção de presos políticos, sistematicamente submetidos à torturas.
A partir daí, as personagens do núcleo estabelecido em Luanda, tentarão construir a identidade desse prisioneiro, tentando fazer o caminho contrário da repressão, voltando à aldeia de origem, passando por uma engenhosa rede de comunicação, cuja apresentação constrói uma outra identidade, maior que a da personagem, a identidade do próprio povo oprimido de Angola.
Em termos narrativos, predomina a narração em terceira pessoa, o chamado narrador onisciente múltiplo, ora “colado” a uma, ora a outra personagem, como no trecho em que o Vavô Petelo esforça-se por manter na memória a imagem do prisioneiro: “...Só no velho Petelo essa cena, vista no relance que lhe permitiam os olhos gazos por céus e mares, mas bem contada no neto Zito, não lhe abandona. Procura não esquecer, traço por traço, as feições adivinhadas, o jeito do olhar, o corpo magro e alto.”. Porém, no capítulo 5, p. 46, Luandino Vieira nos brinda com uma passagem que emprega a técnica da narrativa do fluxo de consciência da personagem Domingos Xavier, que inicia-se no trecho “... É verdade, irmãos, preciso de cumprir. Ontem já cumpri. Na Administração me deram com a pancada nos pés, nas mãos, no mataco, irmãos...”, para mais à frente, esclarecer, honrado: “...Tantas vezes que desmaiei. Mas sempre me acordavam com balde de água e pontapés. Mas não falei, irmãos. Domingos António Xavier não atraiçoou seus irmãos...”.
Em relação à construção das personagens, a maioria constitui-se de personagens planas (para seguirmos a classificação de E. M. Foster), cujas características estão bem marcadas por suas participações e funções na trama, como é o caso dos cipaios, das lavadeiras, do chefe de polícia e do agente que promovia a tortura na personagem principal, em oposição àquelas em cuja psique Luandino se aprofundou, como o Vavô Petelo, Maria e, principalmente, o próprio Domingos Xavier.
Há ainda, de se ressaltar, a participação na trama do grupo Ngola Ritmos, que realmente existiu e cuja importância verídica para o movimento revolucionário é retratada na farra da qual participam, a convite da comunidade. Historicamente, as reuniões em torno do grupo, em suas apresentações, eram também oportunidades de encontro e reuniões de membros do movimento revolucionário angolano.
Além da construção da identidade do povo angolano, A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, também é um romance que amplia a visão do leitor sobre essa identidade ao descrever tanto a paisagem do interior de Angola, nas passagens em que a personagem título ainda encontra-se em sua aldeia, exercendo as funções de tratorista, quanto, também, a paisagem de Luanda, os musseques, as prisões, a cidade alta e a cidade baixa, cenários em que vivem as personagens, algumas transitando entre esses diversos espaços, como é o caso do Vavô Petelo, de Maria e de Xico João.
Por vezes, no mesmo espaço, Luandino ressalta as diferenças sociais da Angola dos idos de 1961: “... O acampamento ficava longe, fora do estaleiro, metido numa baixa, à esquerda da estrada, onde se alinhavam as cubatas iguais dos operários e trabalhadores negros da barragem...”, em oposição a “...Lá em cima, no topo dos morros frescos, viviam, em camaratas de alumínio, os operários brancos, e mais longe, em casas com belos jardins à volta, de relva cuidada, os empregados superiores da empresa...”.
A ambientação, proposta por Luandino, entendida aqui como resultante da interação das personagens com o meio, ganha ares de denúncia social: “... Do menino afogado na lagoa da Pameli ou da faísca que matou a criança refugiada em baixo da mulemba, ou das muitas cubatas que tinham caído nos musseques deixando seus moradores sem abrigo, ou sepultados em vida, nenhum jornal falou.”.
O livro, com seus cortes, suas costuras e suas denúncias, é um desafio de desconstrução e construção: Luandino desconstrói. O leitor constrói, alinhavando, como o alfaiate Mussunda, as linhas soltas do enredo. Cada leitor é um galo de João Cabral. Cada angolano é uma linha...

E é por isso, que Mussunda pode dizer, no final do livro, “...Domingos António Xavier, você começa hoje a sua vida de verdade no coração do povo angolano...”.

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