segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Rui Knopfli


Moçambicano, nascido em 1932 e falecido em 1997. É, sem dúvida, um dos maiores poetas com os quais tomei contato em minha vida. Ele vai inaugurar, neste blog, colunas dedicadas aos escritores africanos (poetas e prosadores), com algumas pinceladas das questões identitárias envolvidas. Sobre Knopfli escreverei mais nos próximos dias. Se você se interessar, pesquise sobre ele. Vale muito...

Dizem que Autopsicografia é uma verdadeira ars poetica de Fernando Pessoa. O poema seguinte (Proposição, do livro "O Escriba Acocorado", mas que eu extraí do livro "Memória Consentida", coletânea da obra de Knopfli, um tesouro que adquiri em 2010 - p. 361) pode indicar muitos caminhos sobre Rui Knopfli e outros... sobre nós mesmos! Enjoy!

PROPOSIÇÃO


Servidor incorruptível da verdade e da memória

escrevo sentado e obscuro palavras terríveis

de ignomínia e acusação. De pouca ternura

também. Na penumbra deste recanto anónimo,

a aranha sombria entretece na quebradiça


baba lucilante o fabrico da História

que há-de ler-se. Animal cauteloso,

retraçando um velho ritual, seus gestos

assumem, ainda assim, a gravidade hesitante

do risco calculado. Séculos de aprendizagem


me ensinaram uma humildade serena. Escrevendo,

escrevo-me, reconciliado com os agravos

suportados e as ofensas infligidas. Os olhos

que mal vêem, viram e não querem esquecer.

E o que não vêem agora, descortina-o a exercitada


sabedoria de quatro sentidos despertos.

Enganei e fui enganado à porta do templo;

no deserto aprendi com a sede a parcimónia.

A um só tempo três mulheres amei

e a nenhuma delas deveras amava. Convicto


lhes menti; foram felizes. Eu não. Por isso

sofri lendo-lhes nos rostos a exaltação

ardente de suporem-se amadas. Traindo,

sucumbi também aos ardis de Atena. Traído,

duplamente traído, a traição que me vitima


em traidor me erige. Hesitações e lapsos

da vontade, por hábito se mudaram

em outras tantas vilezas traições.

Venho de longe, no verbo latino, no axioma

grego, fui escravo no Egipto, homens


morreram a meu lado e vendo-lhe os olhos

agónicos e súplices, voltei horrorizado o rosto.

Aprendi depois o convívio com a morte e que mortos

são apenas gente que nos espera dormindo.

Engendrei filhos, plantei a árvore, ergui pedra


a pedra uma morada. No termo devido, aqueles

dispersaram-se a um destino vário. Breve

me quedava a contemplar os calcinados

escombros da casa que os vira crescer e partir.

Imóvel, assomo agora ao limiar maldito onde,


a fugitiva luz que estremece e, roxa, coagula,

velhos que ninguém conforta, hesitam

e aguardam, repartindo em partes iguais

menos pão do que amargura resignada.

Esta é a sequência das imagens quebradas que o sol


descarna, fragmentos de um corpo cuja

acabada totalidade se perde no torvo domínio

do indecifrável. Em cada reflexo cintila a verdade

e todos reenviam ao mais espesso negrume.

Sorriam pois, falsos deuses, ao meu penoso e árduo


linguajar; que as glórias efémeras cumpram

o seu destino meteórico e, no azul, a esfera

retenha o escorreito traçado da sua curvatura.

A História que há-de ler-se é por mim escrita.

Anonimato igual nos cobrirá. A estas palavras não.