domingo, 24 de fevereiro de 2013

Flávio Roberto Stefani, seu livro Galponeios e um poema especial: identidade e pertencimento




Galponear, segundo o dicionário Houaiss, é "recolher (animais) ao galpão". Nas orelhas do livro "Galponeios", de Flávio Roberto Stefani, editado em 2001, há um texto assinado por Gisele Bueno Pinto, intitulado "Amor a cabresto", no qual ela diz sentir de Flávio  "...como se a inspiração lhe viesse em voleios azuis colorindo o santa-fé escuro dos galpões".

Nas "Primeiras Palavras" do livro, Nilza Castro afirma que "...O livro 'Galponeios' é a revelação do seu sentimento telúrico, enraizado em seu espírito e em seu coração. Merece, pois, os aplausos de seus conterrâneos por adentrar-se, com propriedade e de forma elegante, no regionalismo severo das nossas tradições."

Marlene Pastro, autora das "Segundas Palavras", define-o como "...um pássaro-poeta que nos arrebata em seus sonhos e nos arremessa de pronto ao infinito. Graça divina é tê-lo na poesia e na crônica. Reparo com que intensidade brilham seus versos no cenário cultural do nosso amado Rio Grande."



De fato, Flávio faz jus às belas palavras de suas prefaciadoras, como no trecho a seguir, do poema GAÚCHOS I:


"...São gaúchos esses taitas
que se estendem nas calçadas
fazendo suas moradas
ali mesmo, rente ao chão.
Não tem cavalos nem gaitas,
nem pelego pra deitar,
nem água pra se lavar,
nem erva pro chimarrão.
 
Gaúchos são os andejos,
que, perdendo o rumo certo,
vão rumando pro deserto
que a vida se lhes parece.
Já não montam seus desejos,
montar já nem sabem mais,
roubaram-lhes toda a paz
deram de mão no seu eu..."
 
Obs.: taita = destemido
 
A proposta que me fiz, antes de começar a escrever esta postagem era a de trazer a lume as marcas de regionalismo contidas no texto de Flávio Roberto Stefani, um destacado poeta do cenário nacional, advogado, gremista, com o qual, pude, um dia, repartir uma arquibancada, em Porto Alegre, e assistir um jogo de futebol entre seu time do coração, o Grêmio, e o Flamengo...
 
Porém, quanto mais eu me aprofundava na leitura, mais povoavam a minha mente as questões sobre a "identidade cultural" na pós-modernidade e a noção de "pertencimento", lançadas por Stuart Hall, que bem superficialmente passo a comentar.
 
Basicamente, ainda está em processo, em nossos dias, o que Hall chamou de "crise de identidade". As identidades individuais sempre foram atreladas às identidades nacionais, principalmente antes das grandes alterações geopolíticas na Europa e na extinta URSS. Ou seja, o sujeito definia-se por ser de determinada nacionalidade, identificando-se a partir de critérios regionais, territoriais.
 
Com estas mudanças e o advento da Globalização, estes limites nacionais/territoriais foram um a um sendo derrubados e as pessoas mantiveram, em si, a necessidade de fazer parte. E "fazer parte" entenda-se como pertencer a algum grupo. No entanto, esta busca de uma identidade não se resumia a deixar de pertencer a um grupo de cidadãos de determinada região, com origens culturais comuns e passar a integrar um grupo religioso, ou cultural, ou ideológico, ou sexual distintos. Não.
 
A construção da identidade individual passa pela noção de "pertencimento", ou de "fazer parte" de vários grupos ao mesmo tempo, formando-se, assim, um indivíduo de identidade plural. Exemplificando, uma pessoa, homem ou mulher, brasileiro ou cidadão de qualquer parte do mundo, pratica um esporte qualquer, fala três idiomas distintos, é vegetariano/a, tem uma religião específica, e, por fim, é trovador! Ou seja, a mesma pessoa, dependendo da situação fática em que se encontrar, será socialmente reconhecido como natural ou estrangeiro/a, ou como um atleta, ou poliglota, ou vegetariano/a, um religioso/a, ou trovador/a.
 
Então, o indivíduo é único e plural ao mesmo tempo!
 
Flávio Roberto Stefani registra em seus "Galponeios", todas estas transformações identitárias.
 
Voltando ao trecho do poema em destaque, notem como o poeta constrói a partir da desconstrução: a figura do Gaúcho idealizado é descrita através da indicação de que os "taitas que se estendem nas calçadas" não têm cavalos, gaitas, pelego, água ou erva. Além disso, não são os desbravadores e senhores de todos os caminhos como seus antepassados, porque não têm "rumo certo" e "montar já nem sabem mais...". A figura do gaúcho típico, quase um estereótipo, está implícita, nas entrelinhas.
 
Na sequência do poema, Flávio constata que a culpa da situação de desespero de seus irmãos gaúchos é da própria sociedade, como um todo, quando diz...
 
 
"São gaúchos esses párias
que ajudamos a criar,
que ajudamos a empurrar
pras ribanceiras da vida!"
 
 
Ora, não escapa ao seu olhar aguçado, de homem da terra e, ao mesmo tempo do advogado, norteado pelo espírito de justiça, todo o processo de perda da identidade ligado aos movimentos de opressão dos indivíduos, frutos da opressão dos rearranjos sociais.
 
 
Na segunda parte do poema (GAÚCHOS II), Flávio explicita, o que é raro em poesia, de que matéria foi feito, para termos, então a oportunidade única de estabelecermos contato com as experiências formadoras de sua poética, de seu falar distinto, de seu regionalismo exemplar...
 
 
"...E somos gaúchos quando
o orvalho cobre a folhagem,
cristalizando a paisagem,
e chimarreamos solitos.
Os sabiás são mais bonitos,
mais gordos, e o seu cantar
tem o dom de perpetuar
o canto dos passarinhos.
 
E somos também gaúchos
quando o trabalho nos chama,
e a nossa mão se esparrama,
vertendo o bem que se quer..."
 
 
Um poema extraordinário, que é pura identidade, que é puro pertencimento, tanto no micro, quanto no macrocosmo: a identidade gauchesca, folclórica, dos defensores das fronteiras de um Brasil, que, enquanto vocábulo, parece soar mais poderoso e uno quando dito nas terras do Rio Grande.
 
 
Flávio mostra-se, ao mesmo tempo, reflexivo, intuitivo e personalíssimo, quando nele identificamos o homem, o trovador, o gaúcho, o advogado e o homem de fé inabalável que convivem no indivíduo Flávio Roberto Stefani, presidente da União Brasileira de Trovadores de Porto Alegre, um artífice da palavra e de sua cultura.
 
 
Falei de sua fé e é com ela que termino a postagem, no trecho da terceira parte do poema, GAÚCHOS III...
 
 

"... No arremate dos cantares,
entre luares e sóis
e entre florestas e campos,
ao luzir dos pirilampos,
olhando firme o horizonte,
fazemos nossa oração:
 
Pai Celeste, bom Patrão,
de coração terno e grande,
por favor, dai ao Rio Grande
toda luz que ele merece,
e se não for pedir muito
derramai sobre este povo
uma cambona de amor..."
 
 
Que assim seja, prezado amigo, Flávio Roberto Stefani!
 

 
 




 
 



 

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Estilos literários em um samba-enredo de João Freire Filho



Com João Freire Filho, no Country Club de Nova Friburgo/RJ

 
Todos os trovadores, acredito, tornam-se, de certa forma, órfãos, quando um ser humano como João Freire Filho nos deixa. Sinto-me assim, em relação ao João.
 
Para muitos dos trovadores brasileiros, João Freire, de saudosa memória, será lembrando como Magnífico Trovador, ou como Presidente da União Brasileira de Trovadores (UBT). Também será lembrado por sua marcante voz  e pela emoção sempre à flor da pele quando declamava uma trova, pela forte personalidade, ou como um ferrenho defensor da trova.
 
Para outras pessoas, fora do meio trovadoresco, será lembrado como ótimo professor das séries iniciais, ou como professor e membro do conselho universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
 
Outros, lembrarão com gratidão do professor voluntário do curso preparatório para o vestibular EDUCAFRO, que tantos alunos conseguiu aprovar em importantes vestibulares de seu Estado.
 
João Freire, com sua voz marcante, também era compositor, e foi autor de diversas músicas. Uma delas, em especial, ele cantou para que eu ouvisse no Hotel Fabris, em Nova Friburgo, por ocasião do lançamento de seu livro "Entre achados e perdidos".


 
Era um samba-enredo (cuja música é de seu parceiro Rui Perez), que foi ensinado aos alunos daquele cursinho preparatório. Tenho certeza que esse samba abriu muitas portas. Nunca esquecerei do entusiasmo com que João me falou do samba e, igualmente, de sua alegria e orgulho ao cantá-lo.
 
Edmar Japiassú Maia me pôs em contato com a filha de João (Luciana), quando fiz contato para saber se ele tinha a letra do samba, ou mesmo alguma gravação, para postagem neste blog.
 
Por enquanto, não consegui a gravação, mas a letra foi gentilmente enviada a mim pela Luciana e, ao ensejo do carnaval deste ano de 2013 (hoje é véspera), publico aqui a íntegra do samba, respeitando integralmente a grafia original, para o deleite dos trovadores, amigos do João, sua família e os alunos que o ouviram em primeira mão, desfilando saber e carinho, como só o João Freire Filho sabia fazer!
 
Numa época em que os sambas-enredo são sinônimo de falta de coerência, confusões históricas e parecem ser uma coisa só, uma massa disforme sem conteúdo, o samba de João Freire é um verdadeiro alívio para a alma.
 
Fiquemos com ele, então. E bom carnaval...
 


G.R.E.S. VÊM VINDO OS VESTIBULANDOS
SAÚDA A IMPRENSA ESCRITA, FALADA E TELEVISIONADA, PEDE PASSAGEM E APRESENTA O ENREDO
ESTILOS DE ÉPOCA NA LITERATURA BRASILEIRA:
VAMOS CANTAR A TRAJETÓRIA
DA LITERATURA TUPINIQUIM...
SOB A LUZ DA NOSSA HISTÓRIA,
SUA HISTÓRIA
VEM-SE FAZENDO ASSIM...
O BARROCO É REBUSCADO...
ENTRE “NÓS”, FAZ POESIA...
QUER O CÉU, VIVE EM PECADO
E REJEITA A SIMETRIA...
PASTORES TOCAM FLAUTA NO ARCADISMO,
PREGANDO QUE O BOM MESMO É O BUCOLISMO...
NEOCLASSICISMO – COM RAZÃO, RACIONALISMO!
COM SENTIMENTO DERRAMADO
COM AMOR POR TODO LADO
- POR UM MUNDO COR DE ROSA –,
O ROMANTISMO, FEBRIL,
SEJA EM VERSO, SEJA EM PROSA,
PINTA O MAR, PINTA A FLORESTA,
PINTA O ÍNDIO E O BRASIL!
E O REALISMO, DE PÉS NO CHÃO,
DÁ AS MÃOS AO NATURALISMO,
NA PROSA DE FICÇÃO – SEM EMOÇÃO!
E, ENQUANTO ESSES DOIS SE VÃO FIRMANDO,
NOSSOS PARNASIANOS, PRESOS A NORMAS,
- VERSOS DUROS FABRICANDO -,
NUMA FÔRMA PÕEM AS FORMAS!
MAS... É DAS VOZES DO INCONSCIENTE,
DO VAGO, DO ETÉREO E TRANSCENDENTE...
QUE UM CELESTE MISTICISMO
FAZ SURGIR O NOSSO SIMBOLISMO!
É SINESTESIA, É MAIS SUGESTÃO...
ESSA POESIA... DE EVOCAÇÃO...
É SINETESIA, É MAIS SUGESTÃO...
ESSA POESIA... DE ALITERAÇÃO!
E ASSIM... ASSIM,
DE MOVIMENTO EM MOVIMENTO,
ENTRE RAZÃO E SENTIMENTO, A GENTE CHEGA A 22...
COM O MODERNISMO
- VERSOS BRANCOS, VERSOS LIVRES...
REGIONALISMO
E TUDO “PÓS” QUE VEM DEPOIS!...
E VAMOS...
 
(LETRA DE JOÃO FREIRE; MÚSICA DE RUI PEREZ E JOÃO  FREIRE)



 


terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

A Aurora e o Poente, de Heloísa Zanconato & José Fabiano

 
 
 
Lançado em 2001, o livro "A Aurora e o Poente - Versos Líricos" traz sonetos e trovas dos poetas mineiros Heloísa Zanconato e José Fabiano, em parceria anterior àquela da postagem anterior, com José Ouverney.
 
O meu destaque, desta vez, vai para dois sonetos, um de cada autor, que, de certa forma, "dessacralizam", primeiramente, a figura do fazer poético, negando a aura da inspiração e da sensibilidade pura como forças motrizes do poeta. Num segundo momento, o foco está nos próprios sentimentos "motivadores", digamos assim, do poeta.
 
 
Novamente, chamo a atenção do leitor para a construção de ambos os sonetos. Ambos têm detalhes que os fazem figurar, pelo menos em minha estante, como poemas especiais, pela diferenciação dos temas  e, principalmente, da retórica envolvida. Vamos a eles...
 
 
SONETO
 
Quando a tristeza me arrebata o pranto
ou a alegria, o coração, me assalta,
busco na rima o aprimorado encanto
que, às vezes, sobra em tudo o que me falta...
 
Não é preciso a proteção de um Santo,
nem mesmo a voz da inspiração mais alta;
tampouco, as notas magistraiss de um canto
ou o esplendor das luzes da ribalta...
 
Basta uma folha em branco... e um pena
e a alma transborda, de venturas, plena,
do primo verso ao último terceto...
 
E após o parto... e alcançada a meta,
sente-se um Semideus, este poeta
que deu a luz a um clássico SONETO!
 
(Heloísa Zanconato)
 
 
A elaboração de qualquer texto, ou de um poema em especial, pressupõe uma relação existente de emissão e recepção de uma mensagem, de utilização e comprensão de signos.
 
Não há poeta que não idealize seu leitor, seja ele um outro poeta, ou um interessado, cultor da poesia. De outra parte, tão ou mais idealizado ainda é o poeta, na concepção do leitor.
 
O leitor sempre espera que o poeta escancare sua alma, desnude-se perante a plateia muda e dispersa. Se amou, ou se perdeu seu amor; se venceu, ou foi derrotado. Tudo deve estar no papel.
 
Porém, um poeta que foi muitos outros, Fernando Pessoa, quebrou estas expectativas recíprocas, ao escrever que "O poeta é um fingidor".
 
Mas este "fingidor" não é sinônimo de mentiroso ou falso. A palavra fingidor nasce no latim (fingo, fictum, fingere), no sentido de "moldar o barro". Então, o poeta não mente, molda. Toma uma massa disforme, o barro das sensações e o transforma em um conceito, em uma sensação primeiro pensada, trabalhada, moldada, entendida e, talvez, depois, sentida.  
 
É exatamente isto que Heloísa dispõe em seu SONETO: no primeiro quarteto, ela relaciona alguns prováveis elementos motivadores de sua poesia, sua massa disforme (tristeza, pranto, alegria, rima); no segundo, elimina todas as possibilidades de influências mágicas, espirituais, artísticas e estéticas, para dizer que, o que a impulsiona é a razão.
 
No primeiro terceto, reduz toda a elaboração do poema às questões materiais: um papel em branco, algo para grafá-lo e, num verdadeiro impulso criativo, ela escreve "do primo verso ao último terceto".
 
No segundo terceto, então, desincumbida do árduo trabalho criativo, o poema, aí sim, é sacralizado (semideus) e ganha vida (parto). Espírito e matéria são o próprio soneto.
 
Três observações finais sobre este soneto: 1) seu nome é SONETO, ou seja o nome da própria forma lírica adotada; 2) É um poema metalinguístico, ou seja, em si mesmo discute a própria criação literária e a produção do poema; e 3) o emprego magistral da circularidade, vez que SONETO é a primeira e a última palavra utilizada no soneto! Outro detalhe da circularidade é o estabelecimento de um ambiente fechado, que ao mesmo tempo é restrito e infinito. Marca de gênio e de talento.
 
Não é por menos que Heloísa é considerada, e com justiça, uma das grandes sonetistas da atualidade. Essa foi a Aurora.
 
Nosso amigo Poente não deixa por menos...
 
O LIXO
 
Pela manhã de certos dias, passa
o caminhão de lixo em minha porta
e para longe, rápido, transporta
aquilo que, imprestável, me embaraça.
 
Vai carregando como coisa morta
de serventia para mim escassa,
mimos onde antes via brilho e graça,
cujo destino já não mais importa.
 
As ilusões e sonhos juvenis
de que seria célebre e feliz
conservei longos anos, por capricho.
 
Ante a verdade da fatal velhice,
hoje os desprezo, como se pedisse
que a vida me liberte deste lixo...
 
(José Fabiano)
 
 
José Fabiano constrói seu soneto negando, aparentemente, a própria condição de texto poético.
 
Os dois quartetos iniciais remetem ao gênero crônica. A relação autor/leitor dá-se pela proximidade fixada entre as pessoas reais envolvidas (poeta e leitor) e não nos seus papéis no estabelecimento do vínculo da linguagem (emissor e receptor). Explico: autor e leitor são pessoas que moram em lugares onde, em dias pré-determinados da semana passa um caminhão de lixo, que leva o lixo, ou seja, tudo aquilo que não tem mais serventia, ou estragou: tudo o que seletivamente descartamos de nossas vidas, materialmente falando (técnica invariavelmente utilizada pelos cronistas, que costumam chamar a atenção do leitor para aspectos comuns do cotidiano de ambos).
 
Primeiro ponto em comum entre os dois autores, Aurora e Poente: o estabelecimento de parâmetros materiais de comparação para falar de sentimentos. Claro que o ato de moldar o sentimento a partir da reunião de elementos e organização da massa disforme, em Fabiano, passa, primeiro, pelo estabelecimento desse elo identitário com o leitor.
 
Disposto o conceito e pressupondo que ele corresponda à verdade literária que o autor estabelece, nos tercetos finais José Fabiano arremata brilhantemente seu soneto, ao dizer que as ilusões e sonhos (imateriais) que não conseguiu concretizar (tornar matéria) são como o lixo ao qual ele fez menção no início e dele merecem apenas o desprezo, embora deles não esteja liberto.
 
Ora, a visão romântica do poeta que vive de sonho, é quebrada pelo próprio poeta. Não há esperança. O tempo passou e aquilo que era meta, ou anseio, perdeu-se no tempo. Mas continuam preservados "por capricho".
 
Dessa forma, em Fabiano, a dessacralização é a de si mesmo, enquanto autor, enquanto poeta. Mas sua negação, antes de produzir este efeito (com a eliminação do sonho e da ilusão), é, mais, uma afirmação da mantença da esperança, porque feita poeticamente, em forma de soneto.
 
A metalinguagem, em "O lixo" é subentendida. Permeia todo o soneto, mesmo os quartetos, pela adjetivação positiva emprestada ao lixo, propriamente dito (mimos, brilho, graça).
 
Por fim, também neste segundo soneto a circularidade fica estabelecida porque a palavra "lixo" é repetida no início e no encerramento do soneto. Coisas de quem sabe o que faz!
 
Não abordei propositadamente as questões mais comesinhas da arte poética, como rima, ritmo, emprego de pausas e do campo semântico, visto que procurei chamar a atenção para aspectos que, geralmente são mais "sentidos" do que vistos.
 
Faço ressalvas às minhas próprias análises: além de serem pontuais, no emprego da técnica do recorte, são, também, leituras como quaisquer outras. Li, gostei e comentei da melhor maneira que pude, para torná-las mais palatáveis, bem entendido, aqui, que o problema está na leitura, que é  sempre parcial, sectária, por depender, sempre, dos paralelos estabelecidos pelo "postador". Os poemas, estes sim, devem ser lidos/relidos e você, leitor idealizado/idealizador, deve trazer novas conclusões à luz.
 
Além disto, os poemas estão publicados e existem independentemente da leitura que deles se faça, seja ela profunda, rasa, ou em nível acadêmico. Importam mais como arte e expressão literária. Permanecerão.
 
Sobre os dois poetas abordados, José Fabiano, um mestre dos encontros e Heloísa, tenho a dizer, apenas, que desde que comecei seriamente a pensar a poesia tenho por eles um carinho muito especial. Heloísa Zanconato, em meus primeiros anos na trova, antecipou algumas conquistas futuras, e indicou caminhos preciosos. Só tenho a agradecer e render-lhe este singelo mimo, em forma de postagem.
 
 
 
 
 
 
  




segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

José (Fabiano e Ouverney): um livro a quatro mãos!

 
 
O autor do prefácio do livro "E agora, José...s?!, Arlindo Tadeu Hagen, inicia suas palavras com uma trova...
 
 
Sete sons em quatro versos...
É a trova, em rumos risonhos,
fazendo de homens dispersos
irmãos em rimas e sonhos!
 
 
E prossegue: "...Incrível realmente esse milagre que a Trova tem conseguido fazer no sentido de aproximar pessoas tão diferentes. Diferentes credos, profissões, cidades, condições sociais se aproximam pelo único elo de se descobrirem igualmente Trovadores..."
 
Refere-se, claro, a todos os trovadores de forma geral e a dois, em especial: José Fabiano e José Ouverney.
 
A capa, em si, já é uma obra de arte, da lavra do sempre talentoso Jaime Pina da Silveira. Divertidísssima!
 
 
 
 
 
São 100 trovas de cada autor, com as pérolas que seus autores selecionaram para nosso deleite. Destaco...
 
 
A marca determinante
de um vencedor tem dois traços:
a luz - moldando o semblante,
e a fé - moldando seus passos!
 
(José Ouverney)
 
 
Se a dor de ti se aproxima
e se buscas o que a traz,
não te voltes para cima,
antes olha para trás...
 
(José Fabiano)
 
 
Marcaram minha existência
duas heranças fatais:
no amor, a palavra "ausência";
na ausência, a expressão "jamais"...
 
(José Ouverney)
 
A pano bem alvejado,
político é parecido.
Depois de sujo e lavado,
não perde nunca o encardido...
 
(José Fabiano)
 
 
 
Todas as trovas denotam um trabalho atento de seus autores. Poderiam figurar em qualquer compêndio, ou manual de confecção de trovas ou de poesia de um modo geral. Não são palavras jogadas ao vento. Há, em todas, um intenção bem clara: levar o leitor a ampliar o sentido delas, extraíndo, assim, justamente o que não está escrito. As de Ouverney estabelecem parâmetros de análise, ao indicarem as palavras-chaves para o entendimento da mensagem que pretende fixar (confiança em si e na Divindade, equilíbrio entre matéria e espírito - na primeira trova) e, relação de gradação entre ausência pura e simples e a perda definitiva posterior (na segunda trova), pela reflexão do eu lírico sobre o significado das palavras e o real alcance de suas ocorrências em sua vida.
 
Também as de Fabiano trazem suas marcas de estilo, posto que a primeira denota a própria profissão de fé do autor, pela implícita relação de causa e efeito do destinatário do eu lírico, que deve, antes de culpar um ser superior por seu martírio, examinar sua consciência e/ou seus atos passados, para entender a causa de suas dificuldades. Como eu disse, não são palavras simplesmente jogadas e arranjadas para promover um embevecimento dos sentidos. São trovas para pensar e pensar seriamente.
 
Digo isto, ao final da postagem, porque ouvi, há poucos momentos, que elegeram-se, para a Câmara e para o Senado de nosso país, dois políticos condenados pela Justiça (com fichas mais sujas do que cabeça de estátua em praça pública!).
 
A trova de José Fabiano, com o seu jogo de oposições entre "alvejado" e "encardido", nos faz rir, num primeiro momento... Pensar, logo em seguida... e faz chorar aos mais sensíveis por muito tempo.
 
Quando inventaram de dizer que trova é "arte menor", o sentido original não tinha nada de menosprezo. Isto se devia ao fato de que ela era tramada em redondilhas, só isso.
 
Ao lermos trovas como as dos autores acima, temos certeza de que a arte de trovar é muito maior do que parece, uma trova é como um gás confinado. Abre-se a válvula do entendimento e da reflexão e ele pode expandir-se ao infinito.
 
A expansão continuará na próxima postagem em um outro encontro de José Fabiano, em que voltarei a falar sobre sonetos. Sonetos que dessacralizam o próprio ato da criação poética e os sonhos e anseios do poeta. Até lá e a benção queridos Josés!
 

 
 

 
 
 
 


domingo, 3 de fevereiro de 2013

Os "Sóis e Orvalhos", de Edmar Japiassú Maia - Parte 2: Poesias Livres e Humor

 
 
 
Comentei, na postagem anterior, que "Sóis e Orvalhos", de Edmar Japiassú Maia, era dividido em capítulos. Os dois primeiros, de sonetos e poesias clássicas, respectivamente. Então, a seguir, trago umas breves palavras sobre os dois últimos...
 
Ao capítulo III, Edmar chamou CANTIGAS, com poesias livres. Dizem que aqueles que dominam o verso clássico, quando enveredam pelas searas da poesia livre, caminham com grande facilidade. As CANTIGAS de Edmar parecem confirmar isto, como nos trechos desse poema...
 
 
"INVERNO
 
Frios sorrisos,
bocas esfumaçadas pela névoa fria
que faz das mãos figuras indesejadas,
se nos tocam geladas,
ainda que por amor,
e, ainda que por desejo,
até a imagem do beijo
é tão fria quanto o tempo...
 
...
 
...Manhãs molhadas,
a nuvem nos toca a face
mais fria que o sol que nasce
em tristonha timidez,
mostrando e impondo de vez
os rigores da estação...
 
Noites desertas,
a brisa enrijece o rosto,
que com extremo desgosto
demonstra sua tristeza,
ao pressentir a certeza
de uma solidão forçada..."
 
Como podemos notar nestes versos extraídos do poema INVERNO, o espaço exterior é o reflexo do estado anímico do eu lírico. Manhãs e noites frias, úmidas, tristes. O sol, que apesar de ser sinônimo de calor, de vida, é incapaz de alterar o estado interior do poeta, porque ele é a própria tristeza, que se reconhece no clima, nos dias e nas noites. Ele é o inverno.
 
Note, porém, leitor, que os primeiros versos de cada estrofe têm 4 sílabas tônicas e os demais são redondilhas maiores. 
 
Nem se cogite, aqui, que há algum grilhão que prenda o autor. Antes o contrário: o recurso métrico empregado funciona como quebra e retomada de ritmo. A estrofe inicial tem 8 versos e as seguintes 6. O verso inicial funciona como um subtítulo. Os versos iniciais podem ser lidos fora do contexto do poema e permanecem coerentes com o título. 
 
Além disto, temos uma passagem, em todas as estrofes do que é externo (no primeiro verso) para o que é interiorizado (nos demais).
 
Ou seja, Edmar demonstra que um poema livre pode, sem que isto represente perda de liberdade, ser o resultado de uma proposta estética que deve, sim, possuir coerência em sua estrutura para que alcance seu objetivo, sem que, à primeira vista, sequer percebamos. E esta proposta estética não necessariamente deve ser encontrada em toda a obra, podendo variar a cada poema. É a liberdade íntrinseca ao construto, à elaboração e ao próprio poeta que determina a moldagem do poema e o resultado final.

 
E por falar em liberdade, com a qual Edmar sabe lidar tão bem, chego ao capítulo IV, denominado GRACEJOS, de sonetos humorísticos.
 
A simples pronúncia do nome de Edmar refere, nos quatro cantos do Brasil trovadoresco, competência na elaboração de trovas humorísticas, Magnífico Trovador nas duas categorias, por Nova Friburgo, suas trovas são aguardadas com ansiedade pelos cultores do gênero a cada edição do certame, porque trazem a certeza de boas risadas e espelham a competência dele no gênero, dada a facilidade que tem em "brincar" com as palavras, além do primor de suas chaves de ouro, de seus desfechos.
 
Pois bem, os sonetos humorísticos de Edmar não são diferentes das trovas, embora menos conhecidos do público em geral.
 
Destaco, a seguir, um dos meus preferidos, que além de uma chave de ouro primorosa, utiliza uma técnica interessante nos quartetos e tercetos, até o 13º verso, porque trabalham apenas uma descrição, para formar uma ideia, uma imagem na mente do leitor.
 
O soneto me faz lembrar, na verdade um retrato falado, desses que os peritos policiais elaboram a partir dos relatos das vítimas de assaltos e crimes em geral.
 
Melhor do que dissecá-lo, entretanto, é saboreá-lo: deixo ao leitor, então, a tarefa de construir em sua própria mente a personagem descrita por Edmar com riqueza de detalhes. Cada um construirá a sua, com direito a uma citação da Carta de Pero Vaz de Caminha.
 
Encerro, então, honrado, as postagens sobre o livro Sóis e Orvalhos, na certeza de que os versos de Edmar são um presente a ser partilhado, um tesouro que, quanto mais é dividido, mais é multiplicado.
 
 
"CEGO...DE AMOR
 
Um olho é vesgo e o outro esbugalhado.
O nariz mais parece um pimentão.
Uma verruga solitária, ao lado,
enfeita a grande boca de alçapão!
 
A gengiva, num tom arroxeado,
exibe, com orgulho, um só dentão.
No buraco do ouvido, mal lavado,
em se plantando nasce até feijão!
 
O volumoso colo bem moreno,
carrega um seio enorme e outro pequeno,
fato que a obriga andar meio "empenada"...
 
Parece ter na pança amolecida,
aquilo de que atrás é desprovida,
mas... como é linda a minha namorada!"
 
(Edmar Japiassú Maia)

 


sábado, 2 de fevereiro de 2013

Os "Sóis e Orvalhos", de Edmar Japiassu Maia

 



Sóis e orvalhos, de Edmar Japiassú Maia, foi publicado em 1996. A capa é de Frederico Ferreira Lima Neto e o prefácio de Sérgio Bernardo. Não preciso falar mais nada. Pronto, acabei a postagem. Não, não! É brincadeira.
 
Um poeta da grandeza de Edmar merece um prefácio do também destacado Sérgio Bernardo! E a prefação começa assim...
 
"Há muitas pessoas vivendo em estado de graça com a Poesia, amigo Drummond. Uma delas está no velho Estácio..."

E, mais adiante: "...Ali maneja a sua máquina criadora, e dali espalha aos quatro ventos o produto do seu labor diário: versos que nascem com o destino das asas, qual seja o de ascender... subir cada vez mais alto, e mais alto... até confundirem-se com o próprio sol, tamanha a sua luminosidade..."

Além de outras observações que beiram e transcendem a prosa poética, Bernardo arremata seu pensamento, ressaltando a qualidade da escrita do amigo...

"Um texto autêntico, que, faça-se justiça, parece vir pronto da alma para o papel."

Eu posso dizer mais sobre Edmar, mas não com o conhecimento de causa de Sérgio Bernardo. Posso dizer que nos meus primeiros contatos com a trova, Antonio de Oliveira, ao disponibilizar alguns de seus livros para leitura, chamou minha atenção para as trovas de Edmar, como exemplos a serem seguidos. Tarefa impossível, já que o grande trovador burila seu texto e promove a ampliação dos sentidos de um vocábulo com tanta facilidade que a nós, os mortais, só é possível admirá-lo. Digo mais: algumas das conversas que tive com Edmar tornaram possível meu aprimoramento e me indicaram alguns caminhos preciosos na escrita das trovas.

Vamos, então à transcrição de alguns trechos do verdadeiro pote de ouro que é o livro Sóis e Orvalhos, começando por um soneto...

 
CICLO VITAL
 
Sentado à beira da árvore frondosa
embalançada pelo vento ameno,
vejo cair, bailando sinuosa,
a folha ressecada no terreno...
 
À minha frente, inerte, o ser pequeno
repousa sobre a terra, tão bondosa,
que acompanhou seu crescimento pleno
e hoje o sepulta triste e caridosa...
 
Assim nós somos, entre sóis e orvalhos,
o retrato das folhas que, dos galhos,
desprendem-se na queda inconsequente...
 
E igual a simples folha ressequida,
guardamos os resquícios de uma vida,
para a eclosão de vidas... mais à frente!
 
(Edmar Japíassú Maia)
 
 
 
Na postagem anterior, onde discuti um soneto de Octávio Venturelli, procurei chamar a atenção para a técnica retórica do soneto em que um argumento é trazido, reforçado e a conclusão caminha para a apoteose do último verso, a chave de ouro.
 
A genialidade de Edmar neste soneto, especificamente, está no fato de que o argumento principal, que é desenvolvido ao longo dos quartetos, é preparado no primeiro terceto e só é revelado no terceto final. Fantástico!
 
Isto prova porque o soneto perpetua-se entre nós há sete séculos, pelo menos. E a escolha que fiz deste soneto em especial, se deve ao fato de que foi de um de seus versos que Edmar extraiu o título da obra.

A teoria literária conforma-se em algumas técnicas que possibilitam a análise de qualquer obra a partir do uso de paralelos que podem estar na biografia do autor, em sua localização geográfica e até na história geral e nos movimentos políticos e artísticos de sua época, por exemplo.

Não é isto que farei aqui, mesmo porque não tenho o distanciamento aconselhável do autor. Mas, posso dizer que este soneto é um daqueles que serão apreciados ao longo dos tempos, "mais à frente", como escreveu Edmar.

É uma lição de vida e sobre a vida, da efemeridade e, ao mesmo tempo, da perpetuação dela. É o que me diz o verso "Assim somos nós, entre sóis e orvalhos". Temos, em essência, o mesmo destino das folhas, entre os sóis e orvalhos, os dias e as noites: somos efêmeros, mas, ao mesmo tempo, deixamos um legado. No caso de poetas iluminados como Edmar, um legado de poesia, de uso além dos limites dos sentidos das palavras, usando os registros cotidianos como pano de fundo para a lapidação do texto. Notem que há um ar de crônica no soneto, ou seja, um registro temporal. Sua temática poderia, muito bem ser desenvolvida em prosa, nas páginas de um jornal diário, mas é perfeita como poesia, como soneto.

O livro de Edmar divide-se em capítulos. O primeiro, de onde extraí o soneto acima é GESTAÇÃO. Há mais capítulos, que trarei aqui em uma próxima postagem. No capítulo II, RODA VIVAEdmar traz poesias clássicas. Entre elas, destaco um trecho de...

"SAUDADE, MINHA SAUDADE...
 
 
...Minha saudade aporta em qualquer porto,
desde que exista amor em suas águas;
e a imensa carga de seu desconforto
é feita de tristezas e de mágoas.
 
Mas nem assim minha saudade enxerga
a luz brilhante de um farol que pisca
para avisar que amor a gente enverga,
e quem navega sem amor se arrisca.
 
Seu destino é singrar sem ter destino,
como singra um pirata noite e dia.
Não lhe importa se o sonho é pequenino,
ou se lhe falta a luz da estrela-guia..."


 
Ora, amigo/a, Edmar usa e abusa das metáforas, mas ele pode. É cônscio do poder e da força das figuras que emprega e é magistral na exploração dos sentidos dos vocábulos, como no verso "Seu destino é singrar sem ter destino". Um destino que ora é sina, outra é objetivo, daquele pirata que singra os mares "noite e dia". Olha aí o título do livro novamente: noite e dia, sóis e orvalhos!

A obra de Edmar é coerente em si mesma. Há um sentido, uma estética e, principalmente, uma poética própria, uma espécie de plano, neste poeta que residia no Estácio e que agora respira os ares e a poesia das montanhas na cidade de Nova Friburgo, a mesma onde reside o prefaciador. Terra que foi agraciada, após sofrer tanto, com o convívio diário com alguém que produz uma poesia que, segundo Bernardo, "...Tem brilho próprio, porquanto fruto de uma anímica vocação literária."

E eu, blogando, tenho sorte, muito mais do que muitos ensaístas e críticos literários, porque posso dizer diretamente ao autor: Obrigado, querido Edmar e sua benção dileto amigo!
 

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Há uma canção de amor em cada noite, de Octávio Venturelli

 



A começar do título, que, além da singularidade e poesia traz a métrica de um soneto heróico (um decassílabo com acentuação nas 6ª e 10ª sílabas tônicas), o livro "Há uma canção de amor em cada noite", de Otávio Venturelli, lançado em 1976, transborda em qualidade, sentimento e personalidade, aqui entendida como estilo, aliado a intenção poética, coerência e apurado senso estético.
 
Tenho esta obra-prima sempre à mão, desde 2002. Há onze anos, portanto. Só por curiosidade, visitei o site Estante Virtual e encontrei apenas dois exemplares do livro, catalogado em ambos os sebos como livro "raro". E é raro, mesmo, não só no sentido da dificuldade inerente em encontrá-lo para aquisição, mas, também, na acepção de ser um livro de poesia de qualidade, como poucos.
 
Octávio Venturelli é um caso que justifica o ditado "filho de peixe, peixinho é!". Seu pai, o poeta Venturelli Sobrinho, é o destinatário de uma das dedicatórias mais emocionantes que já li...
 
"...É para meu pai, cujos versos perfeitos e sonoros moldaram minha personalidade poética; cujas rimas vên encantando minha alma desde a minha meninice."
 
E continua...
 
"Graças a Deus eu tenho ainda muitos a quem dedicar, mas este livro é teu, meu pai, porque sempre foi teu...
                                                                         ...antes mesmo de ter sido escrito."
 
 
As orelhas do livro trazem palavras elogiosas e de reconhecimento de Nydia Iaggi Martins, Aparício Fernandes e J. G. de Araújo Jorge. O prefácio é de Milton Reis e a capa de Alexandre Venturelli.
 
À parte o sentimento de profunda amizade e respeito que nutro pelo Venturelli, pelo qual fui nomeado "cachorro" em cerimônia realizada na sua residência, na cidade de Nova Friburgo, com direito a biscoitos caninos no café da tarde, o que é uma distinção equivalente a ser chamado de amigo e tratado com honrarias por muitas outras pessoas, levei um bom tempo para gestar esta postagem, dada a importância e qualidade do poeta, além da verdadeira admiração que tenho pela poesia de Venturelli.
 
Basicamente, "Há um canção de amor em cada noite" é um livro de sonetos (com pinceladas de trovas e poesia clássica) e, neste particular, posta-se ombro a ombro com as melhores obras do gênero.
 
Octávio Venturelli domina, como ninguém, esta forma poética: é autor de um livro chamado "O soneto, seus encantos e segredos", de 2007, um guia de quem declara que, além das fontes consultadas (Bilac, Vasco de Castro Lima e seu pai, Venturelli Sobrinho), diz, ainda que uniu a estas fontes sua convivência "de quase 60 anos, com o Soneto, praticando-o e/ou procurando absorver a beleza, a técnica e a tessitura dos versos de inúmeros sonetistas."
 
Ora, posto isto, transcreverei um soneto que considero primoroso, por razões de  preferência pessoal, somente. O "recorte" analítico (para usar um termo próprio da teoria literária, que foi revivido em minha memória há poucos dias pelo trovador Pedro Mello) poderia destacar qualquer poema ou versos do livro com efeitos semelhantes aos que pretendo produzir e instigar no leitor. Então vamos a ele...
 
 
MINHA CHUVA
 
 
Dizem que, quando chove, a natureza,
como se fora alguém apaixonado,
está chorando o pranto da tristeza
que dos olhos dos céus é derramado.
 
Sinto na chuva o frio da incerteza,
a umidade da dor e o tom magoado
de canções que mantém, ainda presa,
a história dos momentos do passado.
 
A insônia faz a noite mais comprida,
e uma saudade vem mostrar-me o quanto
a chuva tem a cor da despedida...
 
A chuva é triste, se assemelha ao pranto;
e ultimamente tem chovido tanto,
na minha rua, e até na minha vida!
 
(Octávio Venturelli)
 
 
O soneto presta-se, em geral, ao aprofundamento de assuntos os mais variados: desde questões filosóficas e líricas, até humor, escárnio, homenagens etc. Deve haver, então, uma retórica própria, no soneto. Explico: a ideia principal, ou os pontos de vista do "eu lírico" devem ser apresentados ao leitor, confirmados, retomados e comprovados, no espaço estreito de 14 versos. Não é tarefa fácil. Mais ainda: o 14º verso deve conter a chamada "chave de ouro". O soneto tem inúmeras outras propriedades, que não cabem neste pequeno ensaio, mas o resumo acima serve ao "recorte".
 
Os aspecto principal que ressalto neste poema é aquilo que os teóricos chamam de "espaço e ambientação".
 
Venturelli, provavelmente, escreveu este soneto em um dia de chuva (ou de sol, mas o importante é notar que suas reflexões levam em conta o paralelismo que ele vai estabelecer entre a chuva e o pranto).
 
O primeiro verso utiliza o que em análise do discurso convencionou-se chamar de "discurso emprestado", um recurso que adiciona "status de veracidade" ao pensamento (no caso, dizem que quando chove a natureza pranteia...). Estabelecido o primeiro ponto comum entre o poeta e o leitor, que pactuam que a chuva é o pranto da natureza, Venturelli transforma a chuva, que acontece no espaço que existe fora de si, em sentimento interior. Isto refere o segundo quarteto, quando ele atribui à chuva seus sentimentos interiores, de frio, dor e mágoa, relativa às ocorrências do passado.
 
Então, no laço retórico e lírico, o leitor associa  a imagem da chuva aos sentimentos dispostos pelo autor.
 
O primeiro terceto, então, reúne os dois quartetos, reforçando a ideia inicial e provando-a, pelo relato de uma noite de insônia, chuvosa, em que o poeta percebe que a chuva tem a cor (apelo à sensação ocular, chamamento aos sentidos) da despedida (associada à dor, mágoa e, principalmente, à saudade).
 
No segundo terceto, então, o "eu lírico" constata que "a chuva é triste" e semelhante ao pranto, retomando a ideia do espaço exterior, quando diz que "ultimamente tem chovido tanto", como uma pré-apoteose, para o derradeiro verso (chave de ouro): "na minha rua, e até na minha vida!"

Percebe, então, leitor, porque o título do soneto é "MINHA CHUVA"? Pelo simples fato de que a chuva da qual ele fala não é aquela exterior, é a interior: a tristeza, o pranto, a dor e a mágoa de uma despedida. Uma chuva, um pranto, que chove e chora "por dentro".
 
Por mais livros que existam sobre as técnicas de elaboração de sonetos, um soneto de Venturelli equivale a uma escola de poesia.
 
O mais provável é que Octávio Venturelli não tenha pensado em nada do que eu disse quando escreveu o poema. Mas, como ele mesmo afirma, 60 anos de soneto é tempo bastante para que a hemoglobina da inspiração circule em cada célula do poeta e tudo que ele diga ganhe status de verdade, porque como ele mesmo já falou, os poetas têm "fé pública universal"!
 
A benção meu mestre, amigo e dono do canil, Octávio Venturelli!