segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Being Sérgio Bernardo


No filme "Quero ser John Malkovich", no original "Being John Malkovich", a personagem Craig Schwartz, vivida por John Cusack, após começar a trabalhar em um escritório que ocupa o 7° 1/2 andar de um edifício (aliás, aqui cabe uma observação: o andar tem metade do tamanho normal e as pessoas que nele trabalham, são obrigadas a andar curvadas, posto que o teto é baixo), encontra uma passagem secreta, que leva à mente do ator John Malkovich, onde pode permanecer por 15 minutos...

Depois de ler o livro "Asfalto" (lançado pelo selo OffFlip, em 2010), de Sérgio Bernardo, o leitor se vê tentado a, como insinua o título do filme em português, pensar: "Quero ser Sérgio Bernardo"!

Aliás, quem não gostaria de ter escrito...

"Seu sol de catadora,
luz encardida nas calçadas,
gira numa galaxia
de papelão e alumínio,

rendendo trocados
para a quentinha
comida fria
sobre a toalha do asfalto..."

(Cegueira, p. 17)

O título do filme, em inglês, como de praxe nas traduções de títulos de filmes no Brasil, é muito mais abrangente: (Being) "sendo" John Malkovich.

A parábola cinematográfica serve para ressaltar o talento e o estilo do autor.

"Asfalto" é um espetáculo poético, não no sentido festivo do termo, mas por sua grandiosidade, pela capacidade que o livro tem de fomentar, no espírito do leitor, uma profunda e angustiante reflexão sobre o sofrimento e a injustiça que acompanha aqueles que fazem do asfalto sua mesa de refeições, sua cama, sua sala de estar. Mas não é só isso: asfalto também fala dos seres que por ele transitam e que, no mais das vezes acostumaram-se com as imagens dantescas que ele lhes proporciona, como no poema Incompreensão (p. 31):

"Os bons às vezes caminham entre eles,
o céu já lhes foi prometido.
Eles porém ainda não entendem,
com pele cosida aos ossos,
não sabem de paraísos além
de galinha na canja
ou goiabada..."

"Asfalto" talvez seja um retrato poético da chamada "Banalização da Violência", primorosamente discutida por Hannah Arendt, ou seja, as condições precárias de nossa população de rua refletem a violência em estado puro, mantida e financiada pela autoridade do Estado e pela divisão das castas sociais. A vida dos não-sujeitos-de-direito não tem a mínima importância...

"A carne dele é uma sílaba
no conto da cidade,
esconde-se na fenda
de qualquer viaduto.

Um tiro que o atinja
não será ouvido
dentro da música
do dia..."

(Figurante, p. 26)

Ler "Asfalto" podendo ver a paisagem urbana através da visão e dos demais sentidos de Sérgio Bernardo, principalmente aquele sexto sentido tão comum aos poetas, não deve despertar a vontade "Quero ser Sérgio Bernardo". Caso o leitor esteja preparado para ver com os olhos da alma, "Asfalto" será o passaporte carimbado para que, criticamente, por quinze minutos que seja, o leitor deixe de ser o leitor (curvado sob um teto baixo, como os companheiros de trabalho de Cusack) e torne-se o próprio poeta, "being" Sérgio Bernardo!