sábado, 27 de agosto de 2011

Rui Knopfli - Virá


In Memória Consentida, p. 251, um dos poemas de Rui Knopfli que mais me fizeram refletir sobre a vida...


VIRÁ...

Virá no bojo nocturno do avião,

na sede inextinguível do carburador,

oculta no tambor das balas,


presa ao decisivo dedo indicador.

Será o coágulo negro que tomba

no declive suave da artéria, a flor


que desabrocha alucinada nas entranhas

e nos esmaga o peito e nos lateja nas fontes

e nos enreda em funestas espirais.


Respire fundo, não faça esforços

demasiados, precisa muito repouso.

Inútil qualquer precaução. Virá.


(Rui Knopfli)

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Agradecimento!


(Clique na imagem para ampliar)

De um mês para cá, intensifiquei as postagens neste Blog, o que tem me feito muito bem. Com a constância, passei a prestar mais atenção às funcionalidades que o Blogger oferece. Uma delas é a possibilidade de acesso às estatísticas envolvidas, tais como as postagens mais visitadas, os links que remetem o leitor para a página, os navegadores usados e os países de origem de quem acessa o Trov@s e Ci@.

Confesso que me surpreendi com as diferentes origens.

A imagem acima é um extrato dos locais que acessaram o blog nos últimos 30 dias, alguns países africanos de língua portuguesa e o Japão não aparecem na relação, porque, justamente, ela é um extrato, mas, no trato diário pude constatar visitas de Angola e Moçambique, o que para mim, além dos outros países que o fizeram, é um motivo de grande orgulho.

Então, pela ordem...

Obrigado!
Dank!

Obrigado!

Thanks!

спасибо!

Gracias!
Terima kasih!
Gracias!
Gracias!
Gracias!


quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Cássio Magnani - Varietas delectat (1)


Nas incontáveis visitas aos sebos que tenho feito nos últimos anos, encontrei algumas preciosidades. Uma delas foi o livro de Cássio Magnani, Trovas e Trovões - Riso e Siso (1969), que reúne, segundo o autor, Quadrinhas líricas e satíricas e Poemas líricos e satíricos. É um deleite. Aliás, a expressão latina "varietas delectat", que ilustra a página 3, significa "a variedade agrada", ou "a variedade deleita". Constatei, ao ler e reler a obra, que esta expressão resume, exemplarmente, a poética de Magnani.


Confesso que não o conhecia, antes de adquirir a obra. Nas buscas que fiz na internet, pude descobrir que ele radicou-se na cidade de Nova Lima, em Minas Gerais e que seu filho é advogado e vereador. Os dois são autores do Hino da cidade. Letra do pai e música do filho. Não é minha intenção estender-me em sua biografia, mas Magnani foi membro da Academia Belo-horizontina de letras, da Academia Municipalista de letras de Minas Gerais e da Academia Mineira de Trovas. Muito mais ele fez em sua vida civil/militar/literária, mas vou cuidar do que me assiste, aqui, que é render homenagem ao poeta.

O livro está esquematizado como a capa e a expressão latina prenunciam... Seriedade e humor se alternam! Respeitando a grafia original, vejamos...

As disparidades sociais...

Muitas vêzes, a Justiça,
que os formosos olhos cobre,

não vê o crime do rico

nem o direito do pobre.



O jôgo da loteria
é um modo, verifico,
de ainda tornar mais pobre
o pobre que quer ser rico.


A vida e a morte...

Da vida que te embriaga
fica, enfim, tão pouca cousa:
Uma sombra que se apaga,
um nome inscrito na lousa.



Repousa um homem honrado
neste jazigo sombrio
(Eis o epitáfio gravado

sôbre um túmulo vazio).


A eterna busca...

A Felicidade é breve
e a passos largos caminha;
algo bom que a gente teve

sem saber que a gente tinha.

Dicionário Humorístico...

Sumido - aquêle mortal
que vias o dia inteiro,

ao qual pediste um aval

ou emprestaste dinheiro.


Voltarei a Cássio Magnani!


terça-feira, 23 de agosto de 2011

Trova ecológica - Antônio Augusto de Assis



Trova recebida hoje, entre outras tantas de mesmo naipe, do prezado Assis...



A natureza protesta
sempre que alguém a maltrata.
- Se matas uma floresta,
vem o deserto e te mata!


(A. A. de Assis)

domingo, 21 de agosto de 2011

Versos Fraternos


Os trovadores, assim como os membros de fraternidades, costumam tratar-se por IRMÃOS. Em suas correspondências, nas referências que fazem a trovadores distantes, ou, mesmo, já falecidos, o nome do trovador é sempre precedido da palavra IRMÃO... Tenho a honra de pertencer à União Brasileira de Trovadores e pude notar que esse tratamento fraterno é, apenas, reflexo de uma condição não escrita, inerente à todos os trovadores que conheci. Não é à toa que produzem, os trovadores, poetas especiais, pérolas do pensamento humano, que são disseminadas em cada livreto editado à ferro e fogo, por esse Brasil, há tantos anos. Tenho o costume de visitar os trovadores que conheço e, apesar de, ultimamente, estar em débito com algumas visitas, pude perceber que os trovadores, em geral, são profissionais destacados, nos mais diversos ramos do conhecimento. Alguns de cultura invejável, pós-graduados, catedráticos; outros verdadeiros mestres nos ofícios mais diversos, como gráficos, técnicos, donas de casa exemplares, aposentados, professores em todos os níveis, vendedores, funcionários públicos, autônomos. Todos, sem exceção, tem um plus... Talvez, este plus, os tenha tornado, em algum ponto da vida, pessoas especiais, com algo a dizer... TROVADORES, com todas as letras maiúsculas! A todos eles, aos quais, com orgulho, chamo de IRMÃOS, dedico suas próprias trovas, mesmo aquelas que não fiz incluir neste texto.

E, afinal de contas, não somos, mesmo, todos os Homens, Irmãos ? Vejamos... Arlindo Tadeu Hagen, trovador radicado em Juiz de Fora/MG, em seus versos, nos mostra que existem laços fraternos muito mais fortes do que o próprio sangue:

Existe tanta união
entre teus sonhos e os meus,
que só não és meu irmão
por um descuido de Deus!

explicando, em seguida:

Nesta união que não morre,
somos irmãos de verdade,
pois em nossas veias corre
o sangue azul da amizade!

Fernando Costa, de São Paulo, consegue unir o sangue e a amizade, quando diz :

Sou feliz porque consigo,
num mundo em desunião,
ter um irmão como amigo
e um amigo como irmão...

Mas o irmão de verdade é apenas aquele amigo de todas as horas, ou aquele ao qual estamos ligados por laços sanguíneos ? Ana Maria Motta, de Nova Friburgo, chama a nossa atenção para um outro tipo de fraternidade, talvez, até, mais valiosa :

Quando um irmão nos acode,
ou quer, de fato, ajudar,
jamais indaga se pode;
ajuda sem perguntar.

E as fraternidades não são, justamente, baseadas nessa ajuda desinteressada e sempre presente? Atentem, meus Irmãos, para o que dizia Elton Carvalho, trovador do Rio de Janeiro, num interessante jogo de palavras, onde, o que é muito difícil de conseguir, em termos de trova, a palavra/tema IRMÃO aparece grafada em todos os versos e por duas vezes no último...

Socorre, irmão, no caminho,
teu irmão que nada tem...
não existe irmão sozinho:
todo irmão é irmão de alguém!

E quando isto acontece, quando esta importante ajuda é por nós recebida, venha ela de onde vier, façamos como José Maria Machado de Araújo, que disse:

Quando ao céu levanto as mãos,
vejo o quanto sou mesquinho,
pois tenho milhões de irmãos
e penso que estou sozinho!

e arremata seu pensamento, nos versos seguintes, explicando, a seu modo de ver, quem são os irmãos de verdade:

Em qualquer canto da vida,
irmão é aquela pessoa
que pela gente é ferida
e, ferida, nos perdoa!

Que laços seriam esses, então, a unir as pessoas, tornando-as irmãos ? Aprendi a chamar todos os trovadores do mundo de irmãos... Por quê??? Cícero Rocha põe mais lenha na “fogueira das indagações”:

Iludem laços visíveis...
os laços de sangue enganam...
sem liames invisíveis,
nem irmãos gêmeos se irmanam.

E Augusto Astério de Campos, numa trova digna de moldura, descreve a fraternidade universal, sem rótulos, com beleza poética e sensibilidade inigualáveis:

Irmão é o que traz de ofertas
de paz, quando estende a mão,
cinco pétalas, abertas,
das flores do coração!...

Sublime, mesmo, é quando se reúnem, em duas pessoas todos os laços invisíveis, visíveis, sanguíneos e de amizade, como na trova magnífica de Jorge Murad:

Vendo um guri carregado,
por um outro, o ancião,
perguntou: - Não é pesado?
- Não, senhor, é meu irmão!

Ser IRMÃO, de verdade, com todas as letras maiúsculas, não é tarefa fácil, a trova de Maria Nascimento Santos Carvalho, é quase uma prece-parábola, um pedido de perseverança:

Que eu faça o bem no caminho,
amparando meu irmão,
nessa glória de moinho
que ajuda o trigo a ser pão!

A trova seguinte, de autoria do já mencionado trovador e engenheiro Arlindo Tadeu Hagen, bem que poderia ter sido feita por um filósofo renomado:

Não desprezes teu irmão,
porque é simples, porque luta.
A mais nobre construção
não dispensa a pedra bruta!

O desprezo lembrado acima é um forte empecilho à verdadeira Fraternidade, como também o é a Ambição. Ouçamos as palavras sábias de José Maria Machado de Araújo, um dos pioneiros do movimento trovadoresco moderno, nascido em Portugal e que, radicado no Brasil por mais de 60 anos, hoje faz trovas no infinito...

Nascemos irmãos comuns...
mas a ambição e os engodos
puseram, nas mãos de alguns,
o mundo que era de todos!...

E esta afirmação, encontra guarida no lamento de David de Araújo, de São Paulo:

Haveria mais ternura
nesta existência que passa,
se os que se dão na ventura
fossem irmãos na desgraça!

Orlando Brito explica como devemos fazer para evitar tais desencontros, chamando nossa atenção para a importância do encontro das mãos...

Mãos que imploram, na pobreza;
Mãos que assistem seus irmãos;
quanto amor, quanta beleza
há no encontro dessas mãos!

Para mim, é muito importante poder chamá-los, a todos, de IRMÃOS... Eu, que, por força dos desígnios superiores, não pude conviver com meus três IRMÃOS carnais, hoje em outro plano espiritual... Plano este onde, hoje, fazem versos muitos dos trovadores acima mencionados mas que nos versos deixados, nas sábias palavras com que nos presentearam, e como diria o poeta, “quem deixa versos, parece que morre menos...” ainda estão vivos entre nós! De minha parte, repito a trova com a qual iniciei esta Peça, do atuante Arlindo, vice-presidente da UBT Nacional, como um agradecimento a todos vocês, materialmente presentes, ou não:

Existe tanta união
entre teus sonhos e os meus,
que só não és meu irmão
por um descuido de Deus!


sábado, 20 de agosto de 2011

Os Ácaros - História em Quadrinhos

Como comentei em uma postagem de 2008, tive a ideia de criar "Os ácaros" em um curso de histórias em quadrinhos que fiz em Santo André, acredito que em 1990, com o professor Mário Dimov Mastrotti, quadrinista, editor, criador da personagem "Cubinho", publicado no jornal Diário do Grande ABC, entre outros. Na época da primeira postagem, tinha enviado a proposta de publicação da história de apresentação dos "Ácaros" à revista Áporo, editada pelos colegas da USP. O número 2 da revista (junho de 2008) publicou a história, com a arte final da Leila Rodrigues Ferreira da Silva. Por falta de um aparato técnico decente, não havia publicado aqui. A postagem anterior, do Padre Antônio Vieira, me fez lembrar dos Ácaros... Então, segue a história completa, como publicada na revista e exposta na I Mostra de Quadrinhos de Santo André (1990, se não me engano!). É só clicar nas páginas para ampliá-las.






Pequena biografia do Padre Antônio Vieira... em quadrinhos.

Ivan Lins (o da Academia Brasileira de Letras, crítico e biógrafo) escreveu em seu Livro "Sermões e Cartas do Padre Antônio Vieira" (Ediouro, 3ª ed., 1998, p. 19) que "...Dentre os prosadores de Portugal, que fazem jus a uma leitura constante pelo encantamento e proveito que proporcionam, destaca-se - primus inter pares - o Padre Antônio Vieira."
Tomar contato com os textos de Vieira é um aprendizado da melhor retórica. Lins revela aspectos da coragem e determina
ção do Padre, citando, inclusive, como exemplo, a pregação que fez em 1655, do Sermão do Bom Ladrão, perante D. João IV e sua corte... "Presentes os maiores dignatários do reino, juízes, ministros e conselheiros da coroa, todo o tempo falou em ladrões e ladroagens, valendo-se do púlpito como único respiradouro da opinião pública, na falta da imprensa e da tribuna política."
Vieira sabia usar o seu conhecimento das escrituras para, em seus Sermões protestar e alertar o povo quanto aos ru
mos das sociedades portuguesa e brasileira de sua época. Foi, ainda, um ferrenho combatente da inquisição portuguesa: "...os bons, denunciados pelos maus, não sabendo de onde lhes procede o mal e o dano, por se lhes não nomearem as testemunhas, ficam metidos em um labirinto de confusões..."
Ora, o trecho acima poderia muito be
m integrar a obra "O Processo" de Franz Kafka, escrito séculos depois! Quando, em 2007 tive a oportunidade de apresentar na USP um seminário sobre o Padre Antônio Vieira, ilustrei alguns aspectos da biografia do Padre, baseado no livro de Ivan Lins, com uma história em quadrinhos, distribuída aos colegas, que publico abaixo, na qual foi possível, à parte o texto sério da narrativa, brincar com imagens atuais.

Clique na imagem para ampliar.




sexta-feira, 19 de agosto de 2011

A vida verdadeira de Domingos Xavier - Luandino Vieira

“Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos...”

(Tecendo a Manhã, in A Educação pela Pedra
João Cabral de Melo Neto
)


O livro A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, de José Luandino Vieira, foi escrito em 1961, mas publicado apenas em 1971, em edição francesa, como lembra Fernando Augusto Albuquerque Mourão, no prefácio à edição brasileira, da coleção Autores Africanos, da Editora Ática.




Trata-se de um romance em dez capítulos no qual Luandino Vieira delineia, cinematograficamente, eventos ligados à prisão e tortura da personagem título, Domingos António Xavier. A veia cinematográfica da trama se constrói na utilização dos cortes efetuados, geralmente de um capítulo para o outro, nos quais Luandino apresenta ao leitor as diversas personagens e seus papéis no enredo. Ou seja, assim como os galos de João Cabral de Melo Neto, cada personagem contribui, com suas ações, para a formação das identidades em jogo, quais sejam a identidade da personagem Domingos, fragmentada ao longo da narrativa, bem como a de seus companheiros de luta, da rede de “irmãos” revolucionários. Assim, com a evolução dos fatos, é possível para o leitor entender o funcionamento da estrutura revolucionária, passando pela conscientização do povo, como na passagem em que o alfaiate Mussunda explica ao carteiro Xico João a questão da dinâmica opressora entre ricos e pobres (p. 37) e avançando na intrincada distribuição de tarefas entre os revolucionários, envolvendo desde anciãos até crianças, como é o caso de Vavô Petelo (antigo marinheiro Pedro Antunes) e seu neto, o miúdo Zito, este de importância capital na trama, porque é a primeira personagem que informa da chegada de um novo prisioneiro na Cadeia local, na verdade destinada à recepção de presos políticos, sistematicamente submetidos à torturas.
A partir daí, as personagens do núcleo estabelecido em Luanda, tentarão construir a identidade desse prisioneiro, tentando fazer o caminho contrário da repressão, voltando à aldeia de origem, passando por uma engenhosa rede de comunicação, cuja apresentação constrói uma outra identidade, maior que a da personagem, a identidade do próprio povo oprimido de Angola.
Em termos narrativos, predomina a narração em terceira pessoa, o chamado narrador onisciente múltiplo, ora “colado” a uma, ora a outra personagem, como no trecho em que o Vavô Petelo esforça-se por manter na memória a imagem do prisioneiro: “...Só no velho Petelo essa cena, vista no relance que lhe permitiam os olhos gazos por céus e mares, mas bem contada no neto Zito, não lhe abandona. Procura não esquecer, traço por traço, as feições adivinhadas, o jeito do olhar, o corpo magro e alto.”. Porém, no capítulo 5, p. 46, Luandino Vieira nos brinda com uma passagem que emprega a técnica da narrativa do fluxo de consciência da personagem Domingos Xavier, que inicia-se no trecho “... É verdade, irmãos, preciso de cumprir. Ontem já cumpri. Na Administração me deram com a pancada nos pés, nas mãos, no mataco, irmãos...”, para mais à frente, esclarecer, honrado: “...Tantas vezes que desmaiei. Mas sempre me acordavam com balde de água e pontapés. Mas não falei, irmãos. Domingos António Xavier não atraiçoou seus irmãos...”.
Em relação à construção das personagens, a maioria constitui-se de personagens planas (para seguirmos a classificação de E. M. Foster), cujas características estão bem marcadas por suas participações e funções na trama, como é o caso dos cipaios, das lavadeiras, do chefe de polícia e do agente que promovia a tortura na personagem principal, em oposição àquelas em cuja psique Luandino se aprofundou, como o Vavô Petelo, Maria e, principalmente, o próprio Domingos Xavier.
Há ainda, de se ressaltar, a participação na trama do grupo Ngola Ritmos, que realmente existiu e cuja importância verídica para o movimento revolucionário é retratada na farra da qual participam, a convite da comunidade. Historicamente, as reuniões em torno do grupo, em suas apresentações, eram também oportunidades de encontro e reuniões de membros do movimento revolucionário angolano.
Além da construção da identidade do povo angolano, A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, também é um romance que amplia a visão do leitor sobre essa identidade ao descrever tanto a paisagem do interior de Angola, nas passagens em que a personagem título ainda encontra-se em sua aldeia, exercendo as funções de tratorista, quanto, também, a paisagem de Luanda, os musseques, as prisões, a cidade alta e a cidade baixa, cenários em que vivem as personagens, algumas transitando entre esses diversos espaços, como é o caso do Vavô Petelo, de Maria e de Xico João.
Por vezes, no mesmo espaço, Luandino ressalta as diferenças sociais da Angola dos idos de 1961: “... O acampamento ficava longe, fora do estaleiro, metido numa baixa, à esquerda da estrada, onde se alinhavam as cubatas iguais dos operários e trabalhadores negros da barragem...”, em oposição a “...Lá em cima, no topo dos morros frescos, viviam, em camaratas de alumínio, os operários brancos, e mais longe, em casas com belos jardins à volta, de relva cuidada, os empregados superiores da empresa...”.
A ambientação, proposta por Luandino, entendida aqui como resultante da interação das personagens com o meio, ganha ares de denúncia social: “... Do menino afogado na lagoa da Pameli ou da faísca que matou a criança refugiada em baixo da mulemba, ou das muitas cubatas que tinham caído nos musseques deixando seus moradores sem abrigo, ou sepultados em vida, nenhum jornal falou.”.
O livro, com seus cortes, suas costuras e suas denúncias, é um desafio de desconstrução e construção: Luandino desconstrói. O leitor constrói, alinhavando, como o alfaiate Mussunda, as linhas soltas do enredo. Cada leitor é um galo de João Cabral. Cada angolano é uma linha...

E é por isso, que Mussunda pode dizer, no final do livro, “...Domingos António Xavier, você começa hoje a sua vida de verdade no coração do povo angolano...”.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Rui Knopfli


Moçambicano, nascido em 1932 e falecido em 1997. É, sem dúvida, um dos maiores poetas com os quais tomei contato em minha vida. Ele vai inaugurar, neste blog, colunas dedicadas aos escritores africanos (poetas e prosadores), com algumas pinceladas das questões identitárias envolvidas. Sobre Knopfli escreverei mais nos próximos dias. Se você se interessar, pesquise sobre ele. Vale muito...

Dizem que Autopsicografia é uma verdadeira ars poetica de Fernando Pessoa. O poema seguinte (Proposição, do livro "O Escriba Acocorado", mas que eu extraí do livro "Memória Consentida", coletânea da obra de Knopfli, um tesouro que adquiri em 2010 - p. 361) pode indicar muitos caminhos sobre Rui Knopfli e outros... sobre nós mesmos! Enjoy!

PROPOSIÇÃO


Servidor incorruptível da verdade e da memória

escrevo sentado e obscuro palavras terríveis

de ignomínia e acusação. De pouca ternura

também. Na penumbra deste recanto anónimo,

a aranha sombria entretece na quebradiça


baba lucilante o fabrico da História

que há-de ler-se. Animal cauteloso,

retraçando um velho ritual, seus gestos

assumem, ainda assim, a gravidade hesitante

do risco calculado. Séculos de aprendizagem


me ensinaram uma humildade serena. Escrevendo,

escrevo-me, reconciliado com os agravos

suportados e as ofensas infligidas. Os olhos

que mal vêem, viram e não querem esquecer.

E o que não vêem agora, descortina-o a exercitada


sabedoria de quatro sentidos despertos.

Enganei e fui enganado à porta do templo;

no deserto aprendi com a sede a parcimónia.

A um só tempo três mulheres amei

e a nenhuma delas deveras amava. Convicto


lhes menti; foram felizes. Eu não. Por isso

sofri lendo-lhes nos rostos a exaltação

ardente de suporem-se amadas. Traindo,

sucumbi também aos ardis de Atena. Traído,

duplamente traído, a traição que me vitima


em traidor me erige. Hesitações e lapsos

da vontade, por hábito se mudaram

em outras tantas vilezas traições.

Venho de longe, no verbo latino, no axioma

grego, fui escravo no Egipto, homens


morreram a meu lado e vendo-lhe os olhos

agónicos e súplices, voltei horrorizado o rosto.

Aprendi depois o convívio com a morte e que mortos

são apenas gente que nos espera dormindo.

Engendrei filhos, plantei a árvore, ergui pedra


a pedra uma morada. No termo devido, aqueles

dispersaram-se a um destino vário. Breve

me quedava a contemplar os calcinados

escombros da casa que os vira crescer e partir.

Imóvel, assomo agora ao limiar maldito onde,


a fugitiva luz que estremece e, roxa, coagula,

velhos que ninguém conforta, hesitam

e aguardam, repartindo em partes iguais

menos pão do que amargura resignada.

Esta é a sequência das imagens quebradas que o sol


descarna, fragmentos de um corpo cuja

acabada totalidade se perde no torvo domínio

do indecifrável. Em cada reflexo cintila a verdade

e todos reenviam ao mais espesso negrume.

Sorriam pois, falsos deuses, ao meu penoso e árduo


linguajar; que as glórias efémeras cumpram

o seu destino meteórico e, no azul, a esfera

retenha o escorreito traçado da sua curvatura.

A História que há-de ler-se é por mim escrita.

Anonimato igual nos cobrirá. A estas palavras não.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Being Sérgio Bernardo


No filme "Quero ser John Malkovich", no original "Being John Malkovich", a personagem Craig Schwartz, vivida por John Cusack, após começar a trabalhar em um escritório que ocupa o 7° 1/2 andar de um edifício (aliás, aqui cabe uma observação: o andar tem metade do tamanho normal e as pessoas que nele trabalham, são obrigadas a andar curvadas, posto que o teto é baixo), encontra uma passagem secreta, que leva à mente do ator John Malkovich, onde pode permanecer por 15 minutos...

Depois de ler o livro "Asfalto" (lançado pelo selo OffFlip, em 2010), de Sérgio Bernardo, o leitor se vê tentado a, como insinua o título do filme em português, pensar: "Quero ser Sérgio Bernardo"!

Aliás, quem não gostaria de ter escrito...

"Seu sol de catadora,
luz encardida nas calçadas,
gira numa galaxia
de papelão e alumínio,

rendendo trocados
para a quentinha
comida fria
sobre a toalha do asfalto..."

(Cegueira, p. 17)

O título do filme, em inglês, como de praxe nas traduções de títulos de filmes no Brasil, é muito mais abrangente: (Being) "sendo" John Malkovich.

A parábola cinematográfica serve para ressaltar o talento e o estilo do autor.

"Asfalto" é um espetáculo poético, não no sentido festivo do termo, mas por sua grandiosidade, pela capacidade que o livro tem de fomentar, no espírito do leitor, uma profunda e angustiante reflexão sobre o sofrimento e a injustiça que acompanha aqueles que fazem do asfalto sua mesa de refeições, sua cama, sua sala de estar. Mas não é só isso: asfalto também fala dos seres que por ele transitam e que, no mais das vezes acostumaram-se com as imagens dantescas que ele lhes proporciona, como no poema Incompreensão (p. 31):

"Os bons às vezes caminham entre eles,
o céu já lhes foi prometido.
Eles porém ainda não entendem,
com pele cosida aos ossos,
não sabem de paraísos além
de galinha na canja
ou goiabada..."

"Asfalto" talvez seja um retrato poético da chamada "Banalização da Violência", primorosamente discutida por Hannah Arendt, ou seja, as condições precárias de nossa população de rua refletem a violência em estado puro, mantida e financiada pela autoridade do Estado e pela divisão das castas sociais. A vida dos não-sujeitos-de-direito não tem a mínima importância...

"A carne dele é uma sílaba
no conto da cidade,
esconde-se na fenda
de qualquer viaduto.

Um tiro que o atinja
não será ouvido
dentro da música
do dia..."

(Figurante, p. 26)

Ler "Asfalto" podendo ver a paisagem urbana através da visão e dos demais sentidos de Sérgio Bernardo, principalmente aquele sexto sentido tão comum aos poetas, não deve despertar a vontade "Quero ser Sérgio Bernardo". Caso o leitor esteja preparado para ver com os olhos da alma, "Asfalto" será o passaporte carimbado para que, criticamente, por quinze minutos que seja, o leitor deixe de ser o leitor (curvado sob um teto baixo, como os companheiros de trabalho de Cusack) e torne-se o próprio poeta, "being" Sérgio Bernardo!

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Cascalhos e Pepitas - José Antônio de Freitas

O Dicionário Aurélio, em sua versão eletrônica, enumera cinco definições para a palavra (s.m.) "garimpeiro". Interessam, para essa postagem, a primeira e a quinta:

"1. Aquele que anda à cata de metais e pedras preciosas.
2...
3...
4...
5. Explorador de preciosidades literárias ou linguísticas."

José Antonio de Freitas, trovador da cidade de Pitangui/MG, em 2008, lançou "Cascalhos e Pepitas", reunião de 100 trovas de sua lavra. O livro foi prefaciado por Selma Patti Spinelli, Presidente (a) da Seção de São Paulo da UBT.


Mas, qual a razão do título? O autor explica, em uma trova...

Garimpo a ideia bonita
nestes versos que componho
e cada trova é pepita
na bateia do meu sonho!

E o seu livro é isto, um livro de garimpeiro, mas um garimpeiro das palavras, do achado literário, que nos faz imitá-lo, em busca das preciosidades que imprimiu no papel. Não é preciso ir muito longe para encontrar-mos nossas "pepitas"...

Se é o amor que te conduz,
ama sempre sem disfarce,
pois quem acende uma luz
é o primeiro a iluminar-se.

E assim, de trova em trova, José Antonio de Freitas ilumina nosso caminho e inunda-se de luz! Se você for um garimpeiro persistente, do primeiro ou do segundo tipo definidos no "Aurélio", poderá encontrar outras pepitas, fora do livro, mas de autoria do mesmo garimpeiro...

Exagerando em cuidados
por sabê-la primorosa,
os espinhos são soldados
na defesa de uma rosa.

Acredito que, depois desta postagem, saímos, eu e você, mais ricos de nossa garimpagem!

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Meu Caderno de Trovas - João Costa


Dentro em breve, com os diversos incentivos aprovados pelo Governo (leia-se diminuição da carga tributária), o Brasil, um dos maiores mercados de produtos digitais do mundo, será invadido pela produção dos chamados iPads, equipamentos de formato semelhante a um livro (às vezes até mais leves do que este).

O livro impresso, então, será e
xtinto? Acredito que não, num futuro próximo...

Publicar um livro pelo sistema convencional é demorado, implica em diversas etapas de produção, registro, impressão, revisão etc. Mas, os trovadores sempre conseguem d
riblar as dificuldades e dão provas de que, se depender deles, o livro não se extinguirá tão cedo.



João Costa, radicado em Saquarema (belíssima cidade costeira do Estado do Rio de Janeiro), resolveu produzir artesanalmente sua poesia. O resultado é o livro “Meu Caderno de Trovas”, reunião de 100 magníficas trovas de sua lavra, em cuja essência delineiam-se...

Imagens...
“A noite é perfeita e bela,
a lua encanta e seduz,
tecendo em nossa janela
uma cortina de luz.

De exuberância suprema,
que nos encanta e extasia,
cada alvorada é um poema
que Deus compõe todo dia.

O tempo interior...
Quero um relógio, querida,
cujo mágico processo,
atrase a tua partida
e abrevie o teu regresso.

e a fraternidade!
Para quem o bem semeia,
praticando a caridade,
a felicidade alheia
é a própria felicidade.

Na simplicidade da última trova, por exemplo, notem a ocorrência de rimas internas (quem/bem) e rimas cruzadas, do segundo ao quarto verso (caridade/felicidade/felicidade). Entalhes de puro ouro, num livro que se propõe “artesanal”: ars poetica.

Parabéns, irmão João Costa!

Cronologia de um poeta - Primeiros Versos


De 20 a 22 de maio de 2011, ocorreram os 52°s. Jogos Florais de Nova Friburgo. No hotel em que fiquei, também hospedou-se o trovador Antonio Carlos Rodrigues, nascido e residente na cidade de São Gonçalo/RJ, onde recebeu a merecida honra de tornar-se membro da Academia de Letras local.

Antônio Carlos, generosamente, me brindou com seu livro “Primeiros versos”, obra que veio a lume como registro da trajetória poética do autor, em seus primeiros tempos de poesia, posto que ele sempre organizou seus escritos (o que costuma ser raro entre os poetas) em ordem cronológica. Faz metalinguagem ao escrever...


“...os meus primeiros versos são em mim
ainda hoje, como divinal herança.
Momentos que não saem da lembrança,
eterna e linda flor em meu jardim...”


Publicado pela editora Virtual Books, “Primeiros Versos” transborda talento e alma e sela um compromisso com sua musa inspiradora...


“...Já foste a inspiração dessa minha arte
mais pura, mais singela e em toda parte
alegraste a existência deste asceta.

Meu coração agora pede, acusa,
para que sejas sempre a minha musa,
pois serei para sempre este teu poeta...”


Os Jogos Florais deste ano, em Friburgo, marcaram o primeiro encontro dos trovadores locais com seus admiradores de todo o país. Foi um encontro de emoções sucessivas e intensas... Antônio Carlos Rodrigues, com sua sensibilidade ímpar, foi o protagonista do mais emocionante momento de todos os Jogos Florais, justamente em seus final, como vencedor do concurso realizado nos três dias de jogos, cujo tema foi, muito a propósito, RENASCER... Eis a trova que fecha esta postagem, uma verdadeira chave de ouro:

O amanhã revelará
o renascer desse povo:
Nova Friburgo será
Nova Friburgo de novo!

(Antonio Carlos Rodrigues)