terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

A Aurora e o Poente, de Heloísa Zanconato & José Fabiano

 
 
 
Lançado em 2001, o livro "A Aurora e o Poente - Versos Líricos" traz sonetos e trovas dos poetas mineiros Heloísa Zanconato e José Fabiano, em parceria anterior àquela da postagem anterior, com José Ouverney.
 
O meu destaque, desta vez, vai para dois sonetos, um de cada autor, que, de certa forma, "dessacralizam", primeiramente, a figura do fazer poético, negando a aura da inspiração e da sensibilidade pura como forças motrizes do poeta. Num segundo momento, o foco está nos próprios sentimentos "motivadores", digamos assim, do poeta.
 
 
Novamente, chamo a atenção do leitor para a construção de ambos os sonetos. Ambos têm detalhes que os fazem figurar, pelo menos em minha estante, como poemas especiais, pela diferenciação dos temas  e, principalmente, da retórica envolvida. Vamos a eles...
 
 
SONETO
 
Quando a tristeza me arrebata o pranto
ou a alegria, o coração, me assalta,
busco na rima o aprimorado encanto
que, às vezes, sobra em tudo o que me falta...
 
Não é preciso a proteção de um Santo,
nem mesmo a voz da inspiração mais alta;
tampouco, as notas magistraiss de um canto
ou o esplendor das luzes da ribalta...
 
Basta uma folha em branco... e um pena
e a alma transborda, de venturas, plena,
do primo verso ao último terceto...
 
E após o parto... e alcançada a meta,
sente-se um Semideus, este poeta
que deu a luz a um clássico SONETO!
 
(Heloísa Zanconato)
 
 
A elaboração de qualquer texto, ou de um poema em especial, pressupõe uma relação existente de emissão e recepção de uma mensagem, de utilização e comprensão de signos.
 
Não há poeta que não idealize seu leitor, seja ele um outro poeta, ou um interessado, cultor da poesia. De outra parte, tão ou mais idealizado ainda é o poeta, na concepção do leitor.
 
O leitor sempre espera que o poeta escancare sua alma, desnude-se perante a plateia muda e dispersa. Se amou, ou se perdeu seu amor; se venceu, ou foi derrotado. Tudo deve estar no papel.
 
Porém, um poeta que foi muitos outros, Fernando Pessoa, quebrou estas expectativas recíprocas, ao escrever que "O poeta é um fingidor".
 
Mas este "fingidor" não é sinônimo de mentiroso ou falso. A palavra fingidor nasce no latim (fingo, fictum, fingere), no sentido de "moldar o barro". Então, o poeta não mente, molda. Toma uma massa disforme, o barro das sensações e o transforma em um conceito, em uma sensação primeiro pensada, trabalhada, moldada, entendida e, talvez, depois, sentida.  
 
É exatamente isto que Heloísa dispõe em seu SONETO: no primeiro quarteto, ela relaciona alguns prováveis elementos motivadores de sua poesia, sua massa disforme (tristeza, pranto, alegria, rima); no segundo, elimina todas as possibilidades de influências mágicas, espirituais, artísticas e estéticas, para dizer que, o que a impulsiona é a razão.
 
No primeiro terceto, reduz toda a elaboração do poema às questões materiais: um papel em branco, algo para grafá-lo e, num verdadeiro impulso criativo, ela escreve "do primo verso ao último terceto".
 
No segundo terceto, então, desincumbida do árduo trabalho criativo, o poema, aí sim, é sacralizado (semideus) e ganha vida (parto). Espírito e matéria são o próprio soneto.
 
Três observações finais sobre este soneto: 1) seu nome é SONETO, ou seja o nome da própria forma lírica adotada; 2) É um poema metalinguístico, ou seja, em si mesmo discute a própria criação literária e a produção do poema; e 3) o emprego magistral da circularidade, vez que SONETO é a primeira e a última palavra utilizada no soneto! Outro detalhe da circularidade é o estabelecimento de um ambiente fechado, que ao mesmo tempo é restrito e infinito. Marca de gênio e de talento.
 
Não é por menos que Heloísa é considerada, e com justiça, uma das grandes sonetistas da atualidade. Essa foi a Aurora.
 
Nosso amigo Poente não deixa por menos...
 
O LIXO
 
Pela manhã de certos dias, passa
o caminhão de lixo em minha porta
e para longe, rápido, transporta
aquilo que, imprestável, me embaraça.
 
Vai carregando como coisa morta
de serventia para mim escassa,
mimos onde antes via brilho e graça,
cujo destino já não mais importa.
 
As ilusões e sonhos juvenis
de que seria célebre e feliz
conservei longos anos, por capricho.
 
Ante a verdade da fatal velhice,
hoje os desprezo, como se pedisse
que a vida me liberte deste lixo...
 
(José Fabiano)
 
 
José Fabiano constrói seu soneto negando, aparentemente, a própria condição de texto poético.
 
Os dois quartetos iniciais remetem ao gênero crônica. A relação autor/leitor dá-se pela proximidade fixada entre as pessoas reais envolvidas (poeta e leitor) e não nos seus papéis no estabelecimento do vínculo da linguagem (emissor e receptor). Explico: autor e leitor são pessoas que moram em lugares onde, em dias pré-determinados da semana passa um caminhão de lixo, que leva o lixo, ou seja, tudo aquilo que não tem mais serventia, ou estragou: tudo o que seletivamente descartamos de nossas vidas, materialmente falando (técnica invariavelmente utilizada pelos cronistas, que costumam chamar a atenção do leitor para aspectos comuns do cotidiano de ambos).
 
Primeiro ponto em comum entre os dois autores, Aurora e Poente: o estabelecimento de parâmetros materiais de comparação para falar de sentimentos. Claro que o ato de moldar o sentimento a partir da reunião de elementos e organização da massa disforme, em Fabiano, passa, primeiro, pelo estabelecimento desse elo identitário com o leitor.
 
Disposto o conceito e pressupondo que ele corresponda à verdade literária que o autor estabelece, nos tercetos finais José Fabiano arremata brilhantemente seu soneto, ao dizer que as ilusões e sonhos (imateriais) que não conseguiu concretizar (tornar matéria) são como o lixo ao qual ele fez menção no início e dele merecem apenas o desprezo, embora deles não esteja liberto.
 
Ora, a visão romântica do poeta que vive de sonho, é quebrada pelo próprio poeta. Não há esperança. O tempo passou e aquilo que era meta, ou anseio, perdeu-se no tempo. Mas continuam preservados "por capricho".
 
Dessa forma, em Fabiano, a dessacralização é a de si mesmo, enquanto autor, enquanto poeta. Mas sua negação, antes de produzir este efeito (com a eliminação do sonho e da ilusão), é, mais, uma afirmação da mantença da esperança, porque feita poeticamente, em forma de soneto.
 
A metalinguagem, em "O lixo" é subentendida. Permeia todo o soneto, mesmo os quartetos, pela adjetivação positiva emprestada ao lixo, propriamente dito (mimos, brilho, graça).
 
Por fim, também neste segundo soneto a circularidade fica estabelecida porque a palavra "lixo" é repetida no início e no encerramento do soneto. Coisas de quem sabe o que faz!
 
Não abordei propositadamente as questões mais comesinhas da arte poética, como rima, ritmo, emprego de pausas e do campo semântico, visto que procurei chamar a atenção para aspectos que, geralmente são mais "sentidos" do que vistos.
 
Faço ressalvas às minhas próprias análises: além de serem pontuais, no emprego da técnica do recorte, são, também, leituras como quaisquer outras. Li, gostei e comentei da melhor maneira que pude, para torná-las mais palatáveis, bem entendido, aqui, que o problema está na leitura, que é  sempre parcial, sectária, por depender, sempre, dos paralelos estabelecidos pelo "postador". Os poemas, estes sim, devem ser lidos/relidos e você, leitor idealizado/idealizador, deve trazer novas conclusões à luz.
 
Além disto, os poemas estão publicados e existem independentemente da leitura que deles se faça, seja ela profunda, rasa, ou em nível acadêmico. Importam mais como arte e expressão literária. Permanecerão.
 
Sobre os dois poetas abordados, José Fabiano, um mestre dos encontros e Heloísa, tenho a dizer, apenas, que desde que comecei seriamente a pensar a poesia tenho por eles um carinho muito especial. Heloísa Zanconato, em meus primeiros anos na trova, antecipou algumas conquistas futuras, e indicou caminhos preciosos. Só tenho a agradecer e render-lhe este singelo mimo, em forma de postagem.