domingo, 24 de fevereiro de 2013

Flávio Roberto Stefani, seu livro Galponeios e um poema especial: identidade e pertencimento




Galponear, segundo o dicionário Houaiss, é "recolher (animais) ao galpão". Nas orelhas do livro "Galponeios", de Flávio Roberto Stefani, editado em 2001, há um texto assinado por Gisele Bueno Pinto, intitulado "Amor a cabresto", no qual ela diz sentir de Flávio  "...como se a inspiração lhe viesse em voleios azuis colorindo o santa-fé escuro dos galpões".

Nas "Primeiras Palavras" do livro, Nilza Castro afirma que "...O livro 'Galponeios' é a revelação do seu sentimento telúrico, enraizado em seu espírito e em seu coração. Merece, pois, os aplausos de seus conterrâneos por adentrar-se, com propriedade e de forma elegante, no regionalismo severo das nossas tradições."

Marlene Pastro, autora das "Segundas Palavras", define-o como "...um pássaro-poeta que nos arrebata em seus sonhos e nos arremessa de pronto ao infinito. Graça divina é tê-lo na poesia e na crônica. Reparo com que intensidade brilham seus versos no cenário cultural do nosso amado Rio Grande."



De fato, Flávio faz jus às belas palavras de suas prefaciadoras, como no trecho a seguir, do poema GAÚCHOS I:


"...São gaúchos esses taitas
que se estendem nas calçadas
fazendo suas moradas
ali mesmo, rente ao chão.
Não tem cavalos nem gaitas,
nem pelego pra deitar,
nem água pra se lavar,
nem erva pro chimarrão.
 
Gaúchos são os andejos,
que, perdendo o rumo certo,
vão rumando pro deserto
que a vida se lhes parece.
Já não montam seus desejos,
montar já nem sabem mais,
roubaram-lhes toda a paz
deram de mão no seu eu..."
 
Obs.: taita = destemido
 
A proposta que me fiz, antes de começar a escrever esta postagem era a de trazer a lume as marcas de regionalismo contidas no texto de Flávio Roberto Stefani, um destacado poeta do cenário nacional, advogado, gremista, com o qual, pude, um dia, repartir uma arquibancada, em Porto Alegre, e assistir um jogo de futebol entre seu time do coração, o Grêmio, e o Flamengo...
 
Porém, quanto mais eu me aprofundava na leitura, mais povoavam a minha mente as questões sobre a "identidade cultural" na pós-modernidade e a noção de "pertencimento", lançadas por Stuart Hall, que bem superficialmente passo a comentar.
 
Basicamente, ainda está em processo, em nossos dias, o que Hall chamou de "crise de identidade". As identidades individuais sempre foram atreladas às identidades nacionais, principalmente antes das grandes alterações geopolíticas na Europa e na extinta URSS. Ou seja, o sujeito definia-se por ser de determinada nacionalidade, identificando-se a partir de critérios regionais, territoriais.
 
Com estas mudanças e o advento da Globalização, estes limites nacionais/territoriais foram um a um sendo derrubados e as pessoas mantiveram, em si, a necessidade de fazer parte. E "fazer parte" entenda-se como pertencer a algum grupo. No entanto, esta busca de uma identidade não se resumia a deixar de pertencer a um grupo de cidadãos de determinada região, com origens culturais comuns e passar a integrar um grupo religioso, ou cultural, ou ideológico, ou sexual distintos. Não.
 
A construção da identidade individual passa pela noção de "pertencimento", ou de "fazer parte" de vários grupos ao mesmo tempo, formando-se, assim, um indivíduo de identidade plural. Exemplificando, uma pessoa, homem ou mulher, brasileiro ou cidadão de qualquer parte do mundo, pratica um esporte qualquer, fala três idiomas distintos, é vegetariano/a, tem uma religião específica, e, por fim, é trovador! Ou seja, a mesma pessoa, dependendo da situação fática em que se encontrar, será socialmente reconhecido como natural ou estrangeiro/a, ou como um atleta, ou poliglota, ou vegetariano/a, um religioso/a, ou trovador/a.
 
Então, o indivíduo é único e plural ao mesmo tempo!
 
Flávio Roberto Stefani registra em seus "Galponeios", todas estas transformações identitárias.
 
Voltando ao trecho do poema em destaque, notem como o poeta constrói a partir da desconstrução: a figura do Gaúcho idealizado é descrita através da indicação de que os "taitas que se estendem nas calçadas" não têm cavalos, gaitas, pelego, água ou erva. Além disso, não são os desbravadores e senhores de todos os caminhos como seus antepassados, porque não têm "rumo certo" e "montar já nem sabem mais...". A figura do gaúcho típico, quase um estereótipo, está implícita, nas entrelinhas.
 
Na sequência do poema, Flávio constata que a culpa da situação de desespero de seus irmãos gaúchos é da própria sociedade, como um todo, quando diz...
 
 
"São gaúchos esses párias
que ajudamos a criar,
que ajudamos a empurrar
pras ribanceiras da vida!"
 
 
Ora, não escapa ao seu olhar aguçado, de homem da terra e, ao mesmo tempo do advogado, norteado pelo espírito de justiça, todo o processo de perda da identidade ligado aos movimentos de opressão dos indivíduos, frutos da opressão dos rearranjos sociais.
 
 
Na segunda parte do poema (GAÚCHOS II), Flávio explicita, o que é raro em poesia, de que matéria foi feito, para termos, então a oportunidade única de estabelecermos contato com as experiências formadoras de sua poética, de seu falar distinto, de seu regionalismo exemplar...
 
 
"...E somos gaúchos quando
o orvalho cobre a folhagem,
cristalizando a paisagem,
e chimarreamos solitos.
Os sabiás são mais bonitos,
mais gordos, e o seu cantar
tem o dom de perpetuar
o canto dos passarinhos.
 
E somos também gaúchos
quando o trabalho nos chama,
e a nossa mão se esparrama,
vertendo o bem que se quer..."
 
 
Um poema extraordinário, que é pura identidade, que é puro pertencimento, tanto no micro, quanto no macrocosmo: a identidade gauchesca, folclórica, dos defensores das fronteiras de um Brasil, que, enquanto vocábulo, parece soar mais poderoso e uno quando dito nas terras do Rio Grande.
 
 
Flávio mostra-se, ao mesmo tempo, reflexivo, intuitivo e personalíssimo, quando nele identificamos o homem, o trovador, o gaúcho, o advogado e o homem de fé inabalável que convivem no indivíduo Flávio Roberto Stefani, presidente da União Brasileira de Trovadores de Porto Alegre, um artífice da palavra e de sua cultura.
 
 
Falei de sua fé e é com ela que termino a postagem, no trecho da terceira parte do poema, GAÚCHOS III...
 
 

"... No arremate dos cantares,
entre luares e sóis
e entre florestas e campos,
ao luzir dos pirilampos,
olhando firme o horizonte,
fazemos nossa oração:
 
Pai Celeste, bom Patrão,
de coração terno e grande,
por favor, dai ao Rio Grande
toda luz que ele merece,
e se não for pedir muito
derramai sobre este povo
uma cambona de amor..."
 
 
Que assim seja, prezado amigo, Flávio Roberto Stefani!